É difícil andar por certas ruas de São Paulo e não ter a sensação de que a cidade sussurra outras histórias por baixo do seu chão de asfalto e cimento. Combinando memória e imaginação, recorrendo aqui e ali a fatos históricos reais, mas confiando a maior parte do tempo no seu próprio tino poético, Grãos de prata, de Cristina Mira, recolhe em prosa límpida as vozes, os relatos, os registros de amor e de amizade, as pequenas experiências do cotidiano de uma gente, uma comunidade, que começou a habitar as várzeas do rio Tietê na década de 1940, precisamente no momento em que a cidade, arrastada para um projeto de crescimento insensato e grotesco, começava a dar adeus a seu rio principal.
Explorando a analogia com os grãos de nitrato de prata que, na fotografia, fixam a imagem no papel mas que, sob certas condições, podem também velá-la, este livro não obriga seus personagens a falar, mas, sabiamente, deixa que as suas falas – e a fala de quem narra estas histórias – se formem a partir de pequenos acontecimentos: os sons dos passos na ponte de madeira, um passeio de bicicleta, o recorte de uma notícia de jornal, uma volta de barco com o tio, a luz que toca e transforma os objetos na sala, o piso vermelho de uma varanda... É desse cruzamento de histórias e sensações – pontuadas pelas fotos de um álbum de família, tratadas e diagramadas com esmero por Gilberto Tomé – que nasce o ritmo deste livro tão singular, no qual certas beiradas de rio, certas esquinas, a Ponte Grande, que fazia a ligação do centro da cidade com a outra margem do Tietê, ressurgem na voz de personagens vividos e inventados.
“Sou um homem que nasceu, viveu e cresceu na beira de um rio, entre uma margem e outra, com uma ponte no meio. De um lado a Vila Guilherme, o Jardim da Coroa, do outro o Canindé, o Pari e o Brás. Tirar uma ponte é me dividir ao meio” – diz a certa altura Adauto Fernandes, o Pé-de-Anjo, filho de um casal de portugueses que se instalou próximo ao rio e às suas “muitas lagoas”, antes de que a cidade trocasse a existência das várzeas por inundações e catástrofes.
É também na forma de “muitas lagoas”, conectadas entre si, que os blocos de prosa de Cristina Mira tocam o leitor, tecendo narrativas a partir de paisagens e figuras esquecidas, dando relevo a vidas anônimas – aquelas que, como escreveu Antonio Candido, “formam o miolo da história e por vezes exprimem o que nela há de mais humano”. Com uma percepção aguda para a poesia de lugares hoje praticamente invisíveis, Grãos de Prata restitui para os leitores contemporâneos fragmentos de ritmos, paisagens, vozes e conversas há muito soterradas pelo crescimento da cidade e que, por obra da literatura, voltam à luz do dia nas páginas sensíveis deste livro.
Alberto Martins
FICHA TÉCNICA
Romance
Páginas: 80
Formato: 140 x 210 mm
ISSN: 978-85-92875-85-5
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R$50.00Preço
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