'Estela aberta' - um conto do livro 'de A a Z, eróticas'.
Me deixa lamber os teus olhos fechados
Me deixa furá-los com a minha língua pontuda
E lhes encher as órbitas com a minha saliva
Me deixa te cegar
- Joyce Mansour, traduzida por J. Paulo Paes
Fato é que todas as mulheres são abertas. Abertas ao outro, não lacradas, disse ele, com aquela postura franca e burra de quem raramente admite espaço para dúvidas em seu pensamento apressado e empobrecido pela quase total incapacidade de diálogo. Não sou prática o suficiente para chegar a resultados rápidos e definitivos só para fugir da discórdia, prefiro buscar consenso entre as partes, o que demanda tempo e disposição. A guerra eterna a opiniões que não sejam as suas faz parte do “universo masculino“, onde a teimosia reina absoluta e faz enxergar metas claras no nevoeiro. Sabemos que o macho-alfa gosta de viver perigosamente, se arrisca sem medo não apenas por causas nobres e, às vezes, é duro de engolir. Engasgamos com sapos que não passam pela garganta. Observe que são sempre sapos, nunca rãs.
Perninhas de rã, ao contrário, são apreciadas como iguarias nos melhores restaurantes e saem-se bem tanto em receitas tradicionais quanto nas radicais experimentações da cozinha contemporânea. O problema é que nem todo mundo gosta e muitos ficam reticentes em experimentar. Encher linguiça, vamos e venhamos, também é um problema recorrente no “universo feminino”, assim como a dispersão e a acomodação. Deixemos para lá e voltemos, então, à questão central.
Com a língua enfiada em sua orelha, argumentei que os homens são apenas um pouco mais fechados. Nos alimentamos e defecamos por buracos semelhantes. Conforme a proximidade da lente, a boca e o cu até se parecem.
Melhor não confundir. Homem é homem, mulher é mulher, rebateu o bonitão lacrado, simplificando tudo mais uma vez, envergonhado pelos próprios buracos e pelo pensamento inusitado que vinculava o comer ao cagar. Não há nenhuma novidade nisso, mas poucos fazem esta ligação quando dizem que comeram uma mulher. Fico sempre me perguntando se conseguiram digerir e evacuar o que não foi aproveitado de tal “alimento” tão pouco mastigado. Não seria mais adequado dizer que são as mulheres que comem, quando estão famintas por sexo? Algumas vivem de dieta, outras nem tanto.
Procurando sua boca ótima de beijar, mas da qual saíam declarações de merda, citei a filosofia dos gregos antigos que descrevia um ser primordial, feminino e masculino que se rompeu em algum ponto da estrada. O hermafrodita seria uma vaga lembrança deste estado ideal.
Qual seria o ponto de maior equilíbrio na escala atual entre a total homossexualidade e a total heterossexualidade? Sem dúvida, há gente que parece assexuada e feliz, assim como há bissexuais infelizes. Ele ficou mudo e perplexo com aquela conversa fiada. Justo ele que pretendia ser mais aberto, mais feminino, e que por isso me agradava....
Mordisquei seus lábios e ofereci um pedaço de chocolate. Recusou.
Difícil explicar porque gostamos tanto de um pequeno pedaço derretendo no céu da boca. Talvez seja a sensação de conforto, como se nada de mal pudesse nos acontecer naquele momento, como se a sonhada segurança se estabelecesse em um passe de mágica. O prazer imediato da droga que te envolve, encanta, te põe para dormir em paz, convicta de que morte e vida são apenas sonhados.
Às vezes penso que a vida vem da morte e entendo o culto aos antepassados de várias culturas tradicionais que agradecem as gerações anteriores pela sua existência. Ele diz que eu levo tudo muito a sério. Faz parte do feminino, rebato, iniciando o processo de histeria que vai tomar conta de mim caso ele não reaja às minhas carícias. Como é possível que a solução para os meus problemas esteja no corpo do outro?
Tenho que adquirir um vibrador ainda nesta semana. A tecnologia pode me deixar mais calma, pois o caralho dele não fica pendurado e disponível no armário do quarto sempre que preciso.
Para aumentar o grau do feminino é necessário castrar o masculino e vice versa? As mulheres entraram no mercado de trabalho, tornaram-se mais competitivas e também mais angustiadas. Não deixaram de se preocupar com o lar, continuam somando responsabilidades e reinventando relacionamentos. Fomos perdendo a vergonha com o passar do tempo, amparadas no avanço do feminismo. Agora queremos reavaliar processos sem desperdiçar conquistas. O que importa é ser feliz, por mais piegas que isso possa parecer. De repente, ele me enche de perguntas complexas. Eu sei que a revisão é urgente, mas quero adiar esta conversa e trepar. Agora.
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