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Um mosaico de vivências

O surgimento da dita literatura intimista perde-se na noite dos tempos, é verdade... Entretanto, parece ter sido ali pelos fins do século XVIII e os princípios do XIX, que as conhecidas Confessions de Rousseau (1712-1778) assinalam o nascimento da moderna autobiografia, termo usado para designar um tipo de discurso no qual o autor se propõe a falar de si próprio com sinceridade, contando sua vida desde as mais remotas lembranças, sem louvar sua pessoa ou satisfazer a vaidade. Trata-se de uma viagem introspectiva e é compreensível que assim seja, partindo-se do pressuposto de que toda a literatura intimista procura, antes de mais, responder a perguntas essenciais ligadas ao forte desejo de autoconhecimento que inquieta a humanidade. Isso nos remete inclusive àquele antiquíssimo aforismo grego do “conhece-te a ti mesmo” e a perguntas correlatas tais como “quem sou eu?” e “quem sou eu no mundo?”.




Tais questões nos permitem distinguir ainda, dentro da literatura intimista, quais textos se encontram mais ligados ao indivíduo em si (quem sou eu?) e quais indicam mais notoriamente a presença do mundo e dos outros (quem sou eu no mundo?). Incluem-se no primeiro tipo os escritos intimistas propriamente ditos, a autobiografia e o diário íntimo, que se estruturam (embora em graus diferentes) em torno do eu, e no segundo tipo, outros textos intimistas em que a presença do eu é mais fortemente temperada pela sua atuação no mundo.

“Pequenas crônicas do passado”, do escritor e editor Filipe Moreau, é obra que perpassa essas questões e acrescenta um modo próprio de estar e ver o mundo. Divididos em sete blocos, por assim dizer, temáticos, o leitor encontrará pequenas crônicas que demarcam, como bem observa a escritora Renata Py nas orelhas da obra, o “percurso de um indivíduo no caminho do pensamento”. São textos que, por vezes, se apresentam como memorialísticos, outros autobiográficos, há ainda aqueles de forte inquirição existencial e, finalmente, como não poderia faltar, os de caráter confessional, todos acompanhados da devida datação de quando foram concebidos, dentro de um arco temporal de aproximadamente 20 anos.

Evidente que a memória representa o elemento primacial que serve de traço comum ao conjunto da obra, dentro de uma visada de preocupação testemunhal. Alguns manifestam a consciência de registro histórico-social, mas também marcam a história pessoal do autor, que parte para fora do eu para melhor recentrar o que tem de mais íntimo. Ou seja, e por outras palavras, o cotidiano e o banal resultam equilibrados pelo factual e o social. Verdadeiramente uma linha espaço-temporal suficientemente densa para esboçar o percurso de uma vida. A escrita intimista adquire, portanto, uma função investigativa, já que é por meio dela que o sujeito se vê obrigado a repensar o tempo passado e, claro, a forma como esse passado afetou, ou melhor, modificou a sua personalidade.

Importante frisar, no entanto, que os textos coligidos em forma de diário (de periodicidade irregular) não assentam exclusivamente em preocupações intimistas. Também encontramos o sujeito que se confessa ao sabor do correr dos dias e um sujeito que diariamente se olha na escrita, recriando-se, reinterpretando-se. Se, por um lado, resulta texto fragmentário que não esconde a busca de uma verdade – e, portanto, obedece a um princípio de desmascaramento que é a consequência natural da vontade de autenticidade –, por outro, aponta para uma multiplicidade de influências (notadamente as literárias) e experiências vivenciais, sobretudo as tocante ao esforço empreendido pelo autor ao longo do tempo para tornar-se um escritor, como de fato ocorreu, e à propósito, o 6º capítulo – “Com jeito de ficção” –, é sensacional.

Trechos:

“PRAZER DA ESCRITA

Em determinados momentos, escrever torna-se um prazer quase erótico. Mas o que me induz, intriga, faz querer a todo custo tentar o domínio dessa arte é a busca de apreender determinadas sensações, determinados momentos do estar no mundo e na vida.

Momentos de desistência sempre houve. Não só nesta obsessão de tornar-me escritor, mas também em relação a conquistas menores. A vida é gratuita, não necessita de registro para existir, torna-se até mais leve quando livre de reflexões, indagações, discernimentos e dissertações. O que pode ser escrito é a sobra dela, o que não foi vivido de fato. Torna-se assim uma grande responsabilidade a profissão do que pretende apreendê-la sem feri-la. jan 93.”

“EXISTIR É SOFRER?

Esta lucidez, esta possibilidade de uma existência serena... depõem juntas contra a hipótese de ter havido uma força propulsora apenas de sofrimentos. Sou contra a ideia de que tudo o que fizemos e ainda faremos na vida só servirá para pagar o preço dela em moeda de sofrimento. Sempre que possível aproveitaremos os bons exemplos de escritores que analisam o mundo de maneira mais lúcida. jan 19.”

“SUBVERTENDO A GRAMÁTICA

É interessante que se force o nível cultural para cima. Daí minha defesa de que a gramática e a estilística aceitem as variantes mais usuais, mas mantendo as regras da boa literatura, em proteção ao culto. É importante que se defenda a literatura da vulgaridade das propagandas, dos jornalismos, das informações de consumo rápido e em massa, dos trocadilhos, frases de efeito e escritores de formação apenas colegial, por exemplo. jun 93.”

“LATIDOS INFERNAIS

Por que é tão absurdo (chega a ser ridículo) quando começamos a escrever e somos incomodados por barulhos desagradáveis (de telefone, campainha, mas principalmente, no meu caso, por latidos de cachorros)?

E num aspecto, escrever é parecido com lembrar de sonhos. Se a ideia não é explicitada rapidamente ao acordar, ela se perde. Escreve-se tentando acompanhar e acomodar o pensamento, que é mais rápido, enquanto as livres associações vão se sucedendo, algumas mais criativas (geralmente as primeiras, que não se perdem quando há tempo de registrá-las).

Também a lembrança do sonho é assim. Enquanto estamos no próprio sonho, todas as associações são inteligíveis, muitas vezes até claras, mas vão se confundindo à medida que retomamos o estado racional. (Por exemplo: neste momento recomeçaram os latidos, e já não lembro por onde ia seguir.) mar 11.”

“CONFIANÇA

Antigamente eu acharia que o que sinto agora é saudade, mas a vida só faz sentido no que está por vir. Construir um caminho melhor, o tempo todo, é o que se pretende. Se os caminhos se repetem, há o ciclo das estações. Há o ciclo das estações e o dos anos, novas perspectivas, novos sonhos. jul 94."

“Pequenas crônicas do passado” é, portanto, o encontro entre duas instâncias, aquele que escreve e aquele que é fixado nessa mesma escrita – não se trata de um confronto entre dois “eus” separados pelo tempo, mas, antes, entre duas individualidades separadas pela atualidade, ou seja, pelo intervalo que medeia entre o tempo real de determinado acontecimento e o tempo decorrido sobre esse mesmo acontecimento que é fixado pela escrita; a obra termina, em certa medida, por assumir uma espécie de papel mediador entre esses dois reflexos que aí se defrontam e concomitantemente se completam hoje.



Livro: “Pequenas crônicas do passado” – Prosa de Filipe Moreau – Editora Laranja Original – São Paulo – SP, 2020, 208 p. ISBN: 978-65-86042-09-2

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